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O Patrimônio imaterial indígena

A arte indígena e Kaingang

A arte indígena brasileira, com sua diversidade e complexidade, transcende a mera estética, sendo profundamente enraizada nos saberes ancestrais e nas tradições dos diferentes povos indígenas. Essas manifestações artísticas revelam a história e identidade de cada etnia, refletindo suas experiências e visões de mundo, elementos que são parte integral da formação da brasilidade e da identidade cultural brasileira.

Segundo Velthem (2000), as criações indígenas não compartilham da mesma concepção ocidental de arte e, portanto, não podem ser generalizadas como "arte indígena". Ele defende o uso do termo "artes indígenas" no plural, dado que cada grupo possui uma linguagem visual única, moldada por contextos históricos e simbólicos específicos. Esse pluralismo destaca como essas artes estão profundamente ligadas à vida cotidiana e espiritual dos povos indígenas, servindo não apenas como representações estéticas, mas como instrumentos de adaptação e transformação ao longo do tempo.

Autores como Grupioni (2005) reforçam essa visão, enfatizando que as artes indígenas têm uma função que vai além da representação visual. Elas incorporam dimensões identitárias, relacionais e emocionais, sendo um meio de comunicação entre os indivíduos de uma comunidade. Para Gallois (2011), essas expressões artísticas permitem que as sociedades indígenas renovem suas formas de ver e pensar o mundo, atuando como veículos de transmissão cultural entre gerações.

Além disso, a cerâmica e a cestaria são amplamente estudadas no contexto da arte indígena brasileira. A cerâmica, como apontado por Dorta e Cury (2000), não se limita à função utilitária, mas carrega consigo uma historicidade que conecta as peças aos ancestrais. O trabalho com o barro, por exemplo, é uma prática milenar, passada de geração em geração, como observado entre os Marajoaras e Nuaruaques. Já a cestaria, presente em praticamente todas as etnias indígenas, destaca-se pela sua complexidade técnica e simbolismo cultural, como mostram as obras dos Kaingang, amplamente reconhecidos por seus trançados.

O grafismo e as pinturas corporais também são formas expressivas de grande relevância. Para os povos indígenas, como ressalta Perrone-Moisés (2005), essas marcas servem como meios de identificação social e espiritual, comunicando pertencimento e participação dentro da comunidade. A popularidade do grafismo Kaingang, por exemplo, trouxe suas impressões culturais para além das comunidades indígenas, inserindo esses elementos no mundo da arte e decoração contemporânea, o que tem permitido a essas comunidades gerar renda e preservar seus costumes.

Por fim, é crucial destacar que as novas práticas museológicas e de curadoria estão cada vez mais reconhecendo o protagonismo indígena na preservação e divulgação de suas próprias culturas. Exposições como "No Caminho da Miçanga", curada por Els Lagrou (2015), ilustram a importância da colaboração entre indígenas e pesquisadores na criação de coleções que respeitam e promovem o conhecimento tradicional.

Kamé e Kairú: O traçado da identidade Kaingang

A organização social dos kaingang é singular, sendo marcada por uma divisão dualista entre as metades Kamé e Kairú. Cada indivíduo pertence a uma dessas metades desde o nascimento, o que define seu papel na sociedade, suas responsabilidades e até seus relacionamentos matrimoniais.

Essa estrutura dualista não só organiza a vida social e cerimonial do povo Kaingang, mas também reflete a cosmovisão desse grupo. De acordo com seu mito de criação, registrado por Telêmaco Borba em 1882, dois irmãos, Kamé e Kairú, emergiram de uma montanha após um grande dilúvio e deram origem a toda a vida na Terra, incluindo humanos, plantas e animais. Essa dualidade está presente até hoje em diversos aspectos da vida Kaingang, desde o temperamento e as características físicas até o casamento e a divisão de tarefas cotidianas.

Nos casamentos, por exemplo, uma pessoa da metade Kamé não pode se casar com alguém da mesma metade, devendo sempre se unir a alguém de Kairú, e vice-versa. Essa regra assegura que as metades permaneçam equilibradas e complementares, reforçando a ideia de que um depende do outro para a continuidade da comunidade.

As marcas corporais e o grafismo são elementos essenciais para identificar a qual metade o indivíduo pertence. O grafismo dos Kaingang é visível em sua cestaria, na qual os traços abertos representam Kamé, enquanto os traços fechados, Kairú. Essas marcas aparecem também nas pinturas corporais, utilizadas em celebrações e rituais, reafirmando a conexão com sua ancestralidade e cultura.

No entanto, o povo Kaingang enfrenta desafios contemporâneos, como a baixa autoestima e a perda de identidade cultural entre os jovens. Mesmo assim, há um movimento de resgate dessas tradições, especialmente nas escolas, onde as pinturas corporais e o grafismo estão sendo reintroduzidos, fortalecendo o orgulho da juventude em sua herança cultural.

O ritual do Kiki

Os Kaingáng, são um grupo indígena do Brasil que passou por grandes transformações ao longo dos séculos. Originalmente caçadores-coletores, eles gradualmente adotaram a agricultura e a cerâmica, transformando suas práticas e modo de vida. 

Como citado anteriormente, a cosmologia Kaingáng faz parte da dualidade entre Kamé e Kairu, figuras mitológicas que simbolizam metades complementares dessa sociedade. Essa dualidade permeia muitos aspectos da vida social e espiritual dos Kaingáng, inclusive o ritual do Kiki, uma celebração em homenagem aos mortos.

O ritual do Kiki é central na cultura Kaingáng, representando uma maneira de manter viva a memória dos antepassados. No entanto, o sincretismo religioso, a repressão cultural durante a República e a introdução de novas religiões ameaçaram essa tradição.

 

Conforme SILVA (2011), o Kiki ficou suspenso por décadas, mas foi revivido nos anos 1970 com o apoio de padres católicos. Contudo, há preocupações de que o ritual possa desaparecer novamente devido à falta de rezadores (xamãs) e ao crescimento de igrejas evangélicas nas comunidades.

 

Sendo assim, a preservação de rituais como o Kiki é fundamental para a identidade cultural dos Kaingáng, mas eles enfrentam desafios significativos para manter suas tradições vivas em um mundo em constante transformação.

Referências: 

AGUILAR, Nelson. Artes Indígenas. Catálogo da Exposição, 2000.

GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. Olhares sobre as artes indígenas. In: Catálogo da Exposição Brésil Indien, 2005.

GALLOIS, Dominique Tilkin. Patrimônio indígena: renovação e adaptação nas artes indígenas. 2011.

SILVA, Lucas Alves da. A História Kaingáng: Reflexões sobre o Ritual do Kiki e as Políticas Indigenistas no Brasil República. Revista Santa Catarina em História, Florianópolis, v. 5, n. 1, p. 10-22, 2011. Disponível em: file:///C:/Users/Usuario/Downloads/144-Texto%20do%20artigo-1897-1-10-20120817.pdf. Acesso em: 26 set. 2024.

VELTHEM, Lucia Hussak van. Artes indígenas: múltiplos olhares sobre criações milenares. In: AGUILAR, Nelson (org.). Catálogo de Artes Indígenas, 2000.

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